quinta-feira, 26 de abril de 2018

A REPÚBLICA DE TODOS NÓS

Naquele sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada para o ensaio. Antes de atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também aguardando fechar o semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena ficava no início ou no final da rua. Resgatada repentinamente de suas lembranças, ela espontaneamente abriu um sorriso e respondeu que estava indo para lá. O rapaz apresentou-se como Sergio e comentou estar atrasado para encontrar um amigo que o convidara a fazer o teste para substituir um dos atores na peça Doce América, Latino América.
Ana imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois conhecia Antônio Pedro, o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois que prenderam Augusto Boal. Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época em que Boal fora levado pela polícia e torturado na prisão, antes de seu exílio. Por bem, preferiu se calar, pois não queria se expor àquele desconhecido sobre esses assuntos.
Lado a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma esperando por Sergio. Sem mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por ali e aproveitaria para vê-la ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo esse que não apareceu.
Ana logo pensou que havia caído na cantada de um desconhecido, mas procurou se dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar seu interesse. Ao término, foi ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir dele, alegou que precisava se apressar na caminhada até a Avenida São João, onde pegaria o ônibus. Ele sorriu e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na Praça da República. Ela até que gostou dessa paquera.
Mas, durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a falar abertamente sobre a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as células que recrutavam jovens combativas e ousadas “como você”  disse-lhe olhando-a firmemente nos olhos , para atuarem na resistência e coisa e tal.  Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin e Trotsky e completou sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele discurso tinha cara de ter sido planejado, decorado. Não demorou muito para ela perceber a situação em que se metera. Sua intuição dizia para se fazer de alienada.
Então, com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com perguntas idiotas, evitando mostrar qualquer conhecimento profundo sobre política. Seus pensamentos eram relâmpagos cruzando sua mente em todas as direções. Desconfiada, concluiu: “Esse homem já está na minha mira e não é de hoje... ele é um agente da polícia e está me investigando”. Gelou!
Embora não estivesse comprometida com nenhuma organização clandestina, Ana era contra o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis e ‘laranjas’ presos por engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude urgente, dar um jeito de se livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas reuniões que ele dizia conhecer. Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no assédio.
Alguns passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma Veraneio C14 cinza estacionada em local proibido, exatamente para onde eles estavam se dirigindo.
“Ai, meu Jesus, por que eu fui brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por favor, senhor meu Deus me ajude...”, orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de teatro que a vira saindo em companhia de um desconhecido...
“Pronto, é uma armadilha... Eles vão me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me aconteceu... Pensa rápido, pensa rápido, pensa rápido Ana...”. 
Quando estavam quase em frente à Praça lotada, como era comum nos finais de semana, Ana fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao chão. Na queda, ralou o joelho, a mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito verdadeiro de dor. Sérgio tentou acudi-la, mas ela se recusou a levantar. Permaneceu sentada na calçada, gritando cada vez mais alto. Com isso, conseguiu atrair a atenção das pessoas, que foram se agrupando ao seu redor. Fingindo uma dor absurda, ela desatou a chorar, como se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava para a periferia da roda que se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa que era, Ana completou a cena com um ataque de nervos. Aos berros, foi inventando um monte de mentiras: “eu quero o meu pai... ele é da polícia... preciso que ele venha aqui com urgência...”.
As pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao pronto-socorro, mas ela queria que fossem até o teatro chamar sua amiga e a diretora da peça infantil na qual participava. Só sairia dali em companhia das duas. Mal terminara de falar isso, ela se arrependeu, pois Sergio poderia suspeitar das outras também. E aí, sim, ela chorou de verdade.
Naquele momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e pediu que todos se afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque. Disse que ficaria ali com ela, enquanto alguém correria até o teatro para avisar o que acontecera.
Dando graças à providência divina pela aparição daquele anjo, Ana disfarçadamente olhou ao redor.
Sergio já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá estacionada.
Logo chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos foram se dispersando.
Aliviada, Ana se levantou, limpou do rosto as últimas lágrimas e suspirou...
Sua República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada, desafiando o cinza-escuro da ditadura. A transgressora Praça da República dos Meus Sonhos, do grande poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela escolhera para declamar ali em silêncio:

                “A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo
e crianças brincando na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas...”

Por muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse episódio, sem chegar a uma conclusão sobre o repentino sumiço do rapaz: “Seria ele um rato infiltrado ou um contato de verdade tentando me recrutar?”.
Jamais ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que veio, Sergio desapareceu sem deixar rastro.

Era verão de 1972.  

Virginia Finzetto

sexta-feira, 20 de abril de 2018

GUERRA HÍBRIDA

não há surpresas abaixo da linha do equador
o canto da natureza não anuncia mais as estações
o outono está preso, atado ao pau seco
sofrendo pela triste primavera deflorada que não virá
a mão da praga ordena a retirada de seus brotos 
ainda em seu ventre
enquanto o galo tenta recordar em que hora deve cantar 
olhando tristemente para o galinheiro 
que choca ovos que não são seus

virginia finzetto

terça-feira, 17 de abril de 2018

OUÇO


sílabas balbuciadas interrompem
o sal do meu choro
para indagar a deus
se minha dor é não aceitar seus motivos

mas ouço do misericordioso
que eu não sei o que é deus
muito menos o que são motivos

então volto a brigar com os homens
que penso terem a resposta
de que os motivos partem daqueles
que perderam o coração
certos de que servem a deus

mas ouço do misericordioso
que eles não sabem o que é deus
muito menos o que são motivos

virginia finzetto

sábado, 14 de abril de 2018

BARCELONA

o álbum de fotos está guardado em qualquer caixa entre talheres e louças embrulhadas na última mudança. tê-lo em mãos não faz diferença neste momento. logo apresso-me em abrir o livro que, não por acaso, continua no topo da pilha. na página marcada, vejo-me sentada no banco da estação em que desci na última parada, todas as letras a me convidar. embarco nessa leitura misturando o calor da xícara de café com um pouco de tontura. estaremos sempre em Montjuic, abraçados dentro da cabine do teleférico. lembranças agora jorram e ricocheteiam meus flancos tirando-me o ar. preciso descer e vomitar, não consigo prosseguir viagem. a memória que me arrebata esfola, bate, fustiga e não me trará você de volta nunca mais. 

virginia fInzetto

crédito da imagem: Teleferic.1931 Port-Montjuich. Barcelona - https://br.pinterest.com/agomezgine/montjuic-i-el-poble-sec/

segunda-feira, 2 de abril de 2018

TEMPO

afago, dinheiro, informação... Ana seguia pensando em tudo o que poderiam lhe arrancar. algumas coisas, até sem muito esforço, acabaram indo embora por si, porque não tinham importância ou valor às quais ela quisesse se apegar. por ingenuidade, muitos assaltos e sobressaltos lhe aconteceram, no corpo e na alma. no entanto, ninguém lhe roubaria o tempo. desde muito cedo aprendera a controlá-lo. era criança quando indagou em público quem o teria inventado, pois o sentia armazenável, codificável, palpável como sentia o vento, a chuva ou qualquer outro fenômeno que podia apreciar com os sentidos. só depois descobrira que seu sentido não era visível aos olhos comuns e que seu tempo não fazia morada em qualquer vilarejo nem era identificável em algum radar.

virginia finzetto

sábado, 31 de março de 2018

ENCANTAMENTO

pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra. 

virginia finzetto

sexta-feira, 30 de março de 2018

RONDA

subiu a escadaria que dava acesso ao primeiro andar do pequeno hostal de Ronda. abriu a porta da habitação, um ambiente singelo. deixara um recado na portaria, para que não a importunassem até o dia seguinte. havia uma cama de solteiro simples, um criado mudo e um rádio sobre ele. o banheiro coletivo ficava ao final do corredor. foi até lá fazer sua higiene e voltou a se trancar no quarto. sentou-se na beira da cama, mas não estava confortável. precisava ficar ereta, então a cadeira de longo espaldar seria melhor. fechou os olhos para iniciar a meditação. em poucos segundos, devido à prática de anos, deixou que lhe chegassem as impressões. de alguma maneira aquele rádio tão próximo estava interferindo, porque não conseguia parar o Cantares na voz de Sabina. ligou o rádio e lá estava. "yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón"... impressionante o significado da palavra sintonizar. só confirmava, por já não sabia mais quantas vezes, o que voltava a experimentar. 

olhou por um bom tempo a gota de tinta seca verde-clara escorrida na porta do armário daquele quarto antigo. pensou sobre todos os instantes em que as criações acontecem por atenção e pela falta dela, por cuidado e pela ausência dele. por escolhas, tanto o lixo quanto a arte ganham espaço na existência. pensou nos minutos anteriores em que cruzou com o casal de lésbicas que se beijava no corredor e uma delas chorava. pensou ser uma despedida de duas pessoas que se amavam e observou em si uma dor e uma indiferença, ângulos desse ego que se identifica, que julga, que é capaz de negar a si mesma uma vida plena de escolhas acertadas, que tateia no escuro e acumula arrependimentos. Ana olhou de novo a gota e preferiu que ela tivesse escorrido e não ficasse ali como uma mágoa cristalizada. será que a moça ficará bem? 


pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra. 

virginia finzetto

quinta-feira, 29 de março de 2018

BORNOS

verão de 40 graus. o clima seco e o calor intenso estavam interferindo na possibilidade de uma escolha acertada. literalmente, de cabeça quente, teria sido melhor ter se refrescado, ingerido muito líquido e procurado um ambiente refrigerado, antes de tomar qualquer decisão. porém, a impaciência do velho andaluz a atormentou de tal maneira, que ela apontou a casinha de Bornos para ser sua vivenda por uns tempos. logo se viu assinando a papelada. em pouco tempo um coche a conduzira para seu novo endereço. toda sua vida agora se resumia a duas malas que conseguira trazer sem exceder o peso de bagagem da companhia aérea barata. era o que menos importava, o essencial ia na frente, ela, ao lado do condutor, pronunciando qualquer conversa fiada em espanhol enquanto sua alma se convencia de quantas vezes e inúmeras tentativas em vão tivera em adivinhar seu futuro planejado. chegamos! tudo era tão simpático. pelo menos, até ali, nenhuma novidade. das muitas casas que procurara no site, essa fora uma escolha acertada. com suas economias poderia bancar um aluguel pelo tempo estipulado. abriu o portão de ferro da entrada e logo todo seu desconforto foi amenizado pelo microclima fresco do pátio ajardinado. "bom dia!", ouviu de uma voz masculina com sotaque português. "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?"... como um tropicão no dedão do pé, ela voltou a cabeça para ele, da mesma maneira que se olha para uma pedra ou elevação na calçada querendo tirar satisfação ou culpá-la pela repentina interrupção do trajeto. "bom dia, senhor. o que disse?".

enquanto aquele senhor português permaneceu 
aguardando alguma reação positiva de Ana, ela voltou a repetir a pergunta sobre que tipo de avistamentos ele havia se referido. "pois, se não sabes, é bom que permaneças assim... tem um ótimo dia", respondeu se despedindo. mas que diabo de sujeito estranho, pensou, enquanto encostava o portão que dava acesso à calle. depositou sua bolsa na mureta que cercava o jardim e entrou na pequena casa. da mobília da sala se desprendeu um olor tão forte de velharia, que atacou imediatamente sua rinite alérgica. após espirrar várias vezes, fez uma rápida vistoria nos demais cômodos e abriu todas as portas e janelas para que o sol pudesse penetrar e arejar os vãos, que pareciam bocejar após despertarem de um sono centenário. ao mesmo tempo em que se ocupava com a tarefa, Ana acolhia flashs aleatórios de sua vida. como em um roteiro, ia fazendo ali anotações imaginárias, puxando setas dos detalhes relevantes, como se nessa revisão fosse possível alterar um filme rodado, editando-o e colorizando-o em uma versão atualizada. 

deixou escorrer a água quente da torneira da pia da cozinha até que ela se tornasse tíbia, pois desconfiou que com aquele calor não esfriaria nunca. encheu os dois regadores e foi aguar os canteiros ressequidos e saudosos da molha de uma chuva adiada por meses. entrou, acomodou suas malas em um canto do quarto e abriu o velho guarda-roupas, que lhe soprou segredos ali trancafiados. quem teria sido o último a habitar aquela casa? sentiu uma pequena compaixão do móvel que bufava cheiros medievais enquanto ainda se prestava a servir a tantas incógnitas, viajantes, passageiros, itinerantes. seria apenas mais uma a lhe amolar com suas parcas roupas e poucos acessórios. não pretendia ficar ali por muito tempo. tratou de tirar o pó acumulado em suas frestas e borrifou nele um pouco de mauá, antes de guardar suas coisas. como seria possível alcançar o que fica além das estrelas se ainda queria matar sua curiosidade sobre toda a existência? a literatura era uma das vias que poderia usar. cada personagem representa uma das facetas do que mostramos ou escondemos de si e dos outros, como o deus que respira semeando e recolhendo o que quer. olhar para o além do que ela podia imaginar estava sendo adiado. havia tanto a lidar ao seu redor que não entendia como alguém se ocupa em divulgar avistamentos sem ter testemunhado. não, ela não perdia tempo com suposições.

bebeu vários goles de água da garrafa que abastecera a geladeira. todo o ambiente inundado com os raios de sol trouxera de volta a alegria. acomodou a mala maior deitada sobre a prateleira do guarda-roupas e, em seguida, antes de guardar a mala menor, retirou dela a pequena máquina de escrever portátil e colocou-a sobre a mesa da saleta, inserindo uma nova lauda em branco para testá-la e garantir que não havia nenhum dano provocado pelo chacoalhar dos deslocamentos durante a viagem. "a humanidade é a realização do eterno e cada indivíduo uma linha de um número incalculável do que ainda está por vir. será possível que os exemplares derradeiros não abriguem mais os primórdios dessa trama original?". ao registrar isso, refletiu que o esquecimento gradativo a que todos fomos submetidos ao longo dos milênios seria parte de um esgarçamento premeditado que não renunciou de deixar em cada ser um fiapo que fosse de recordação de sua origem. e essa pequena pista era a grande responsável pelo desejo nostálgico de voltar a se unir aos outros fios, na tentativa de refazer, em retrospectiva na memória, a construção do trajeto que levaria ao rico tecido inicialmente projetado. o sagrado havia se espalhado e ordenado que toda a forma de arte e de escrita deixasse um registro, uma pista e tudo o que pudesse levar a quem quisesse a fazer essa viagem de volta. o profano seguia lado a lado. ambos trabalhando no imenso bordado, recortando-o e colando-o, desfiando-o e tecendo-o, em maravilhas e horrores. não eram suposições. muito menos sua era a criação dessa meada. 



viveu ali por dois meses e partiu no mesmo táxi que a trouxera, rumo a Ronda. das transgressões que somente seu ser permite-lhe ir além das crenças, Ana concluiu, finalmente, que ser livre como costumava se gabar nem mesmo era um ato de sua própria vontade. até aquele destino já estava traçado. ao fechar o portão da casa que a recebera pelo tempo exato de concluir uma parte do seu livro, foi novamente surpreendida pelo senhor do sotaque português: "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?". com um largo sorriso, Ana deu-lhe um abraço carinhoso de despedida: "sim, Antônio, agora sim... adeus meu amigo...". antes de entrar no coche, a última mirada ao pátio, que agora estava mais verdejante e cheio de vida do que quando chegara. partia já prevendo que sentiria falta dali, do pouco que acrescentara à vida do povoado, mas principalmente falta dele, o vizinho que todos consideravam maluco, personagem de sua próxima história.  

virginia finzetto

MINARETE

suas lembranças viajavam à velocidade do Altaria visto do minarete da mesquita de Córdoba. suas lágrimas incontroláveis, agora, eram acalentadas pela mesma direção do trem, seguindo rumo ao seu destino, sem poder voltar atrás pelo mesmo trilho como algo que se possa manobrar com facilidade naquela aceleração. quantas recusas poderiam ter lhe poupado a tristeza, se tivesse entendido que todas elas jamais poderiam retornar ao ponto em que ainda não teriam sido proferidas, como probabilidades quânticas em que seu desejo pudesse alterá-las. desculpas ou justificativas, para que servem? nada mudaria o desferimento da sentença dada. fechou os olhos e se abraçou mentalmente. sentiu em si o peso de se ser o que se é. teria tempo, mais de cinco horas, para curar sua digestão. por um instante pensou se Juan padecera da mesma inquietação... 

virginia finzetto

terça-feira, 27 de março de 2018

TRAVESSIA

com a cabeça recostada, ela observava postes e casas a se deslocarem rapidamente pela janela. em algumas horas estaria em Algeciras, pernoitaria ali e pegaria logo cedo o primeiro ferry para Tânger. tudo planejado e pontual, como descrito no mapa que pegara no quiosque de turismo em Madrid. riu da memória de sua última vez em Asilah: teria ainda hoje o mesmo valor de um camelo? salivou ao lembrar das sardinhas fritas. mas nenhum dos retratos que tirou registrou o perfume da medina que impregnara seu coração, carregado de lembranças de Juan. talvez não tenha mais fim esta dor, pensou. 

virginia finzetto

domingo, 25 de março de 2018

CANDEEIRO

na parede de madeira da sala de chão batido, o pavio ressecado do candeeiro pendurado sinalizava o tempo de abandono ali sem uso por falta de fluido. de novo, acenderia a mesma grossa vela, que deixara em cima da mesinha de canto, já em toco, rodeada de seus endurecidos choros anteriores, e se sentaria ao lado, na velha cadeira de assento de palha. restaria pouco lume para lamentar a escuridão, mas o suficiente para ela terminar de ler a missiva de dez laudas, frente e verso, que recebera de Inácio. qualquer pessoa teria, apressadamente, à luz do dia, liquidado o assunto. menos ela, que nunca deixara de ouvir os causos dele com a mesma atenção que lhe dedicara sua vida inteira. capaz de prever em suas linhas quando um segredo estava prestes a se revelar, ela mansamente dobrava a carta e afagava-a contra o peito, depois guardava-a para o dia seguinte, como quem tapa provisoriamente a fissura de uma represa para evitar o desperdício do precioso líquido, adiando o final do prazer que aquela leitura lhe proporcionava... 

virginia finzetto

FÔLEGO

minha alma
na caixa torácica
gorjeia em foles
como um pássaro
pego no alçapão

esse alpiste
diário que tenta
me comprar
não serve de alimento
é só um alento
um hálito que engana

a dor dessa prisão

virginia finzetto

MANIA DE AMAR

de paixão não se morre,
embriaga-se, apenas
com fartos goles de licor
pitanga, absinto, pistache
rara tatuagem
passageira dor


muita decalcomania
farta alucinação
todas...

um porre!


virginia finzetto

CARAVANA

não  arranco de  mim nenhuma poesia 
sou hospedaria de palavras beduínas
que se  importam  só com o caminhar
se encontram  o oásis de um deserto
espalham ali  sementes  de acasos e
sem pressa sabem  as 36 luas contar


virginia finzetto

domingo, 18 de março de 2018

POR QUE ESTÁS TÃO TRISTE?


não foi a camélia
foi Marielle 
que levou quatro tiros
e depois morreu
ela é que era mulher
de verdade
não foi Amélia
e hoje
não é outro dia...


virginia finzetto

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

RECADO DE BATOM

antes que o movimento da casa de cômodos aumentasse com a chegada dos novos hóspedes, Ana decidira escrever rapidamente um recado. no meio daquela algazarra, pensou qual seria o melhor lugar para colocar visível a mensagem. desistiu. teria que escrever um cartaz, do contrário o bilhete poderia ser confundido com tantos outros papeizinhos espalhados e misturados a contas vencidas, propagandas de pizzaria e dedetização, recibos da farmácia, lixo... a geladeira estava coberta de ímãs de toda espécie. Arminda perdera ali o horário da medicação e acabou esquecendo por dias de ingerir o comprimido da pressão. internada, não resistiu. então Ana resolveu pegar seu batom vermelho, já gasto, e rabiscou na porta de entrada: "Pablo, ou você entra e fica, ou saia de vez da minha vida". guardou o toco do que restou na bolsa e correu apressada para o ponto. antes de pegar o ônibus, flagrou o desgraçado beijando a menina na boca.  

virginia finzetto


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

CASOS E DESCASOS

na infância eu adorava tanto uma música dos beatles, que queria que ela ficasse tocando pra sempre sem parar. depois, quando eu me separei do meu primeiro amor, chorei tanto, que pensei se não era isso o tal do fim do mundo. então, para parar de sofrer, como sofria uma adolescente da minha época, eu me convenci de que tudo se resolveria depois da minha morte, num futuro bem distante, quando nós ficaríamos unidos no céu. até lá, eu iria tratar de me divertir. com o tempo, fui me aprimorando na arte de amar e de contar histórias de separação. foram tantos casos e descasos, tantas intensas e rasas paixões, que, certamente, quando eu finalmente para lá fizer a última viagem, vou me arrepender até os últimos de ter desejado essa vasta poligamia ao som eterno do I Want To Hold Your Hand.  

virginia finzetto

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

FELIZ ANO NOVO!

Eu te desejo o novo.
Todo começo pode ser dúbio, quando o início e o término se fundem. Então, que seja esse um ponto de encontro.
Eu te desejo a ruptura na continuidade.
Deixa fora a falsa era de calendários mendigando para que seus dias arrastados sejam marcados com um “x”. Frustra o viço das agendas fresquinhas em folha, certas de que serão rabiscadas com os mesmos compromissos a se realizarem mecanicamente.
Eu te desejo o inédito.
Como em um pano virgem esticado no bastidor aguardando o bordado, fixa em ti o fio escolhido no vão entre a urdidura e a trama e, a partir daí, inicia um ponto. Seja mesmo um ponto atrás, mas que nesse ponto surja o exclusivo. Sem esquemas, deixa que os matizes combinados dos fios desfilem livres e adquiram força para impor o riscado, talvez um desenho, um colorido que ainda não tenhas imaginado a princípio.
Eu te desejo o mergulho.
Antes! Viva a proposta de bons títulos, para que tu faças ali um berço, um ninho. O deleite do livro escolhido, para que nele te entregues na paz infinita do entretenimento ao ler cada palavra a caçoar de todas as certezas. Aproveita o convite para abraçar qualquer direção que faça a ti um sentido.Eu desejo tuas garras cravadas em qualquer tempo lembrando a mesma maciez que tem ao se afundar os dedos em pelos de cão e de gato.O mesmo que para mim, eu desejo por inteiro e para o todo.
Eu te desejo o novo em ponto!
Eu te desejo um ano streaming.
virginia finzetto 
crônica publicada na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com), em 18/01/2018

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

GRANDE SER

faz anos que não posso mais falar vou ali comprar cigarro. se eu quisesse, saía por aquela porta sem dar satisfação e ia me encontrar com Joca Ramiro lá no sertão das Gerais. sei que a galope vai minha alma, pelas páginas de escritas diversas, vez ou outra uma paradinha em alguma estação do tempo,ficar ali bebericando as lembranças. aí eu me lembro que tenho uma cozinha para limpar e que não carece nem fazer café, por causa de não consumir açúcar. depois eu volto pro meu ser, tão veredas, em árida rede. 

virginia finzetto

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

FELIZ ANO VELHO

Minhas idas ao centro são frequentes. Pego o Praça Ramos fora do horário de pico e vou sentada até o ponto da Xavier de Toledo. Quando eu desço do ônibus, outra viagem se apresenta. Dificilmente fico no presente assim que olho para o Teatro Municipal. Envolvida em reminiscências, pergunto-me como tamanha beleza ainda se conserva como baluarte da história paulistana a despeito de tantos estragos já promovidos ao seu redor, seja pela falta de consciência de programas políticos, que não levam em conta a preservação do nosso patrimônio, seja pela ausência de cidadania dos ignorantes, que deliberadamente depredam e emporcalham nossas ruas.
Sigo em caraminholas, enquanto atravesso o viaduto do Chá em direção à Praça do Patriarca. No vaivém da multidão, de repente, alguém segura meu braço com firmeza. Levo um tremendo susto, pensando em assalto…
Qual deveria ser minha reação diante do avanço da miséria e da violência que aumentou barbaridade? Mas olho melhor para ele: um idoso de expressão bondosa, olhos de íris opacas amareladas, sorrindo com dentes marcados pelo abuso do fumo, face envolta em longa barba alva, prestando muita atenção em mim.
    — Bom dia, menina, você continua bela!
    — Ãhn…?
Rapidamente, minha memória vasculha nos arquivos recônditos imagens da infância e da juventude tentando encontrar alguma que case com a da insólita figura. Para minha surpresa, certa que estou de se tratar de um desconhecido, e já me esquivando com ar de ofensa, ele me chama pelo meu nome completo na língua do pê!
Depois, gargalhando ao ver minha expressão de “cruz credo”, ele prossegue:
    — Ei, Virginia Finzetto, sou eu… o Papai Noel! Não se lembra de mim?
Não faço a mínima ideia de como esse sujeito maluco descobriu meu nome. Isso só pode ter sido, para não fugir do espírito natalino, uma presepada de algum amigo que estaria por ali escondido e rindo da minha cara. Em seguida, o bom velhinho me solta e desaparece rapidinho na contramão.
Oh, céus! Só posso ter enlouquecido em meus delírios, penso.
Então, venho tornar público o caso, para que, quem sabe, possa chegar até ele, agora, todos os pedidos que armazenei desde a época em que passei a ser uma garota incrédula sobre sua real existência.
Diz a lenda que Papai Noel lê, além de cartinhas, o coração de todos os puros. Mesmo assim, resumo minha lista em apenas este desejo:
Xô, 2017!
Dissolva e leve, com a mesma velocidade vertiginosa com a qual você aconteceu, todos os equívocos cometidos covardemente em nome de qualquer divindade.
Assinado:
Eu,
a que prefere apostar em sonhos realizáveis.”

— Feliz ano, velho!
virginia finzetto 

crônica publicada na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com), em 19/11/2017

DILÚVIO


primeiro movimento
dias o sol não aparecia, e no ar um cheiro forte de tempestade se aproximava. Em outras épocas ela não teria dado tanta importância ao fato bastante corriqueiro na aldeia. Hoje, ambas, ela e aldeia, não eram as mesmas. Uma aridez infinita havia invadido suas terras, e o pouco que brotava, dando pequenos frutos, fora profanado, arrancado por quadrilhas de ladrões e legiões de vampiros que invadiam a região todos os dias. E ainda aproveitavam e abusavam dela e dos seus, sem piedade. Seu útero era uma ferida aberta cuspindo tanto sangue, que ela perdeu a noção da diferença entre o que era sequela da violência do que era sua menstruação. Lilith em dilúvio. Ela ainda ovulava.

segundo movimento
Acordara de madrugada banhada em suor e sangue, e sua temperatura teria explodido um termômetro. Teria sido febre ou delírio aquele sonho? Ou ambos? A infecção não cedia, e agora era impossível segurar também a urina do medo, que arrebentava diques no meio da noite...  
outrora da grota que sangra
agora brota lágrima
gota a gota
de angra
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Talvez por isso a cena de um dilúvio iminente, segundos antes de acordar. Sonhou que havia uma nave imensa em seu quarto, de proporções irreais. Do alto uma voz lhe dizia que poupasse apenas as suas partes, pares e ímpares, abrindo mão de vizinhos adormecidos em distrações e promiscuidades e de qualquer bandido declarado, isento ou não de paixões. Ela entrou, mas ainda não havia acordado.

terceiro movimento
Aquela voz, cuja imagem não era visível, ordenou que se lacrasse a nave por fora, e ela permaneceu em seu interior. A princípio claustrofóbica, pôs-se a gritar e a se debater entre suas próprias duras e resistentes paredes corporais, enquanto apenas os seus, que a ouviam, não podiam ajudá-la, pois entregues ao comando do alto estavam aceitando ficar trancafiados juntos, em total silêncio e vigília.

quarto movimento
Aos poucos, calma e aceitação vieram acudi-la, ao mesmo tempo em que o barulho do estrondo do dilúvio externo quase lhe arrebentou os tímpanos. A força de todas as águas que caíam trincaram suas defesas naturais e ela se prostrou de joelhos, em oração, enquanto tudo que ficara do lado de fora ia sendo liquidado com a língua de raio de uma justiça que até então ela desconhecia. Coisas que jamais voltaria a encontrar. Choveu quarenta dias e quarenta noites sem parar.

quinto movimento
Ela pressentiu quando a nave se elevou com as águas, e nenhum dano lhe atingiu. A turbulência exterior contrastava com o acomodamento interior de seu corpo. O sangue e a urina haviam se estancado, agora em reconciliação. Mas ainda não podia tocar todas as suas outras partes, em suspensão, que aguardavam sua própria hora. Alisava freneticamente seu monte de Vênus, na intenção de tirar os vestígios de toda invasão a que fora submetida até então. fora já não havia cumes.

sexto movimento
Ela ainda não acordara quando a porta da nave se abriu. Em silêncio soube de súbito que a única maneira de não sentir mais nenhuma dor emocional era deixar que ela doesse até que ela mesma a levasse à origem, única, de todas as outras dores, cuja resposta sempre esteve dentro de si mesma. urgência no encontro do amor verdadeiro, porque atravessar tudo isso, de mãos dadas, é a mais produtiva das parcerias. ...deus gosta!

sétimo movimento
E quando toda água diluviana baixou em segurança, a voz pediu que ela abrisse os olhos, pois haveria de ser por essas janelas que entraria a luz da revelação, conforme a promessa que ouviu:
muitas vezes, e tantas vezes,
quão indivisíveis e indizíveis
são meus amores

como arco-íris, eles se escondem nos céus,
e aparecem aos incrédulos, vez ou outra,
em sete cores


E ela renasceu em segurança e em total comunhão com o que sempre lhe pertencera.

por virginia finzetto


Meu conto na coletânea COLETIVO, publicado pela Scenarium Livros Artesanais, em 2017.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

DOS MEDOS

pior do que o contato com o subterrâneo é ficar alojado nas reentrâncias da parede do precipício. sem poder subir nem descer, acobertado pela covardia, em profundo esquecimento, perde-se o diálogo principal do script. ao final, quando a paralisia das limitações físicas chegam, as asas já não batem por falta de treino. aguarda-se então a vinda da morte vagando-se em distrações. só a misericórdia entende e acolhe o cadastro de futuras tentativas, mas de novo aparece o medo, antigo esconderijo de proteção das feras, que acaba se tornando ele mesmo o imbatível bicho-papão. 


virginia finzetto

sábado, 25 de novembro de 2017

O QUE OS OLHOS COMUNS NÃO VEEM

ah, o amor,
essa mina de ouro,
guia sua paixão
a procurar diamante
até em garimpo
abandonado


confia que ali
sob escombros
escondido
vive um tesouro
querendo
ser encontrado

virginia finzetto

O FACE NÃO ME DEIXAR POSTAR

será que fui BLOQUIFREIDIADA? não consigo postar escrevendo direto no meu mural.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

LINGUAGEM

eu tenho um caderno repleto de poemas invisíveis. em cada folha, vejo um lápis hesitante e um verso abortado. códigos dos anjos votivos da boca calada. dizem eles que meu silêncio é o fermento necessário para o florescer das ideias luminosas. sem nenhuma previsão, descrevo saudades antigas, como essa que trago dos Beatles quando mataram Paul McCartney e eu acreditei. depois assassinaram o Lennon de verdade, Imagine! George, arre!Sun mil também. agora, só Ringo Starr. 




virginia finzetto

domingo, 19 de novembro de 2017

APREÇO

apreciar, ato raro. não sinto em nenhum de seus sinônimos a poesia cadenciada que exala desse verbo que rebola bola sensualmente. não se trata de botar reparo, muito menos de manifestar arroubos. na mesma calçada, de mãos dadas, andam juntas paz e serenidade. apreciar é a musa do ócio criativo, seu caso de amor mais antigo. do contrário seria apenas leitura dinâmica, passar de olhos. apreciar é agarrar com as mãos ávidas uma grande foda sem hora marcada, penetrando todos os poros do deleite.


virginia finzetto

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

IN EXTREMIS, IN AETERNUM *

Às vezes me pego esperando por algo que precisa acontecer para que outro acontecimento aconteça. É como se houvesse a necessidade tácita de um antes nos bastidores dos atos. Uma antecâmara de cada cena manipulando-as como marionetes para a plateia sempre adormecida.
Seguir o ritmo de um marcador de tempo, como no compasso de um marca-passo, no número de giros da corda mecânica da caixinha de música, no intervalo de cada clique do interruptor de luz…  Nos instantes em que estamos ausentes, onde estamos?
Seria esse gap proposital para que o ser desperto se dê conta do significado da pura espontaneidade? Esta que é a naturalmente responsável pela condução da vida de toda a criação que não a humanidade.
No momento em que o avião inicia sua decolagem, não resta outra opção além da minha entrega para que vingue o voo. Para o curso planejado não pode haver dúvidas.  Qualquer vacilo, gagueira, espirro pode virar o fracasso do espetáculo.

“— Pode-se continuar morrendo pela eternidade…”

Pode-se continuar vivendo na vacuidade.
Pode-se perpetuar alheio a cada golfada de ar a preencher os pulmões.
Pode-se fingir atenção em cada distração.
Pode-se permanecer disperso em qualquer concentração.
Preso a algum ponto da esfera, percebe-se singularmente esse intervalo feito de números, calendários, metas, morais, regras, crenças convencido de que se pertence a algum diâmetro ou raio em particular.
Viver é um verbo que só pode ter sido inventado por algum prestidigitador, nome difícil até de pronunciar. Morre-se desde que se nasce, perpetuamente.  Só.
virginia finzetto
* Nos últimos momentos da vida, eternamente.
publicado na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com) em 9/11/2017

domingo, 5 de novembro de 2017

BISCATE

no meu ramo
há negócios
frutíferos

faço cílios
postiços
de papel crepom
para faróis de carro

enfeito a vida
e ganho o pão
com quebra-galhos

virginia finzetto